O racismo na composição do corpo docente da USP – e a oportunidade que não podemos perder

Por Nuno M. M. S. Coelho, professor e diretor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP

 11/05/2022 - Publicado há 2 anos
Nuno M. M. S. Coelho – Foto: Reprodução / IPTV

 

A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP abriu de forma muito bonita o seu ano letivo, no dia 27 de março, com uma importante conferência sobre a USP e o racismo.

O que o professor Kabengele Munanga, tratando do tema “O papel da universidade na luta contra o racismo e em defesa das políticas afirmativas”, rememorou e propôs ali é simples e verdadeiro. Corresponde àquilo que vem ensinando há muito tempo, e que parece encontrar neste momento de nossa universidade um ouvido propício.

A USP fez movimento histórico, nos últimos anos, em favor da igualdade racial, por políticas afirmativas que modificaram o perfil de nosso alunado de Graduação – que deixou de ser esmagadoramente branco, correspondendo agora ao perfil racial da sociedade que nos mantém.

Embora tardio (a USP foi quiçá a última universidade brasileira a implantar políticas de promoção da igualdade racial para ingresso na graduação), este movimento merece o forte aplauso de todos nós: trata-se de política pública eficaz com efeitos imediatos (em termos do enriquecimento cultural e da diversidade que experimentamos nas salas de aula, nos grupos de estudos, nos auditórios e laboratórios), e ainda mais importantes na longa duração.

Surgem também novos desafios, ligados à garantia de permanência de jovens que não integram a elite econômica e racial do País e que agora, finalmente, deixam de ser exceções entre nós.

O debate se expande acerca do tema, mobilizando unidades de toda a USP. O campus de Ribeirão Preto, por exemplo, prepara sua I Conferência de Saúde Mental e Bem-Estar com o objetivo de propor diagnóstico amplo e políticas estruturantes, para entender o que é efetivamente necessário para assegurar o acesso integral à educação, ultrapassando óbices econômicos, raciais, de gênero, sociais, emocionais ou culturais – que muitas vezes causam prejuízo acadêmico, exclusão, sofrimento e morte.

Expande-se e institucionaliza-se, com a criação, importantíssima, pelo Conselho Universitário reunido no último dia 3 de maio, da Pró-Reitoria e do Conselho de Inclusão e Pertencimento da USP – e que dará lugar à criação, nas unidades, de Comissões de Inclusão e Pertencimento. São colegiados estatutários, permanentes, que abrigarão e levarão às Congregações e ao Conselho Universitário leituras da realidade e propostas de normas, ações e programas.

São auspiciosas a seriedade e a atenção que a comunidade e gestores por toda a USP têm dedicado à questão, agora e nos últimos anos. Constroem-se políticas efetivas para promover o pertencimento, a igualdade, a dignidade e a cidadania de estudantes da Graduação (e também da Pós, embora ainda de forma mais incipiente).

Promovemos acesso mais justo à USP, e há progressivo acordo quanto à necessidade de assegurar a permanência com condições de excelência acadêmica para todas as pessoas.

Temos muito a aplaudir e a construir nesse campo, mas gostaríamos de chamar a atenção aqui para outra questão, sobre a qual algumas pessoas (pessoas importantíssimas, a quem devemos agradecer muito) têm insistido, no Conselho Universitário, mas sem repercussão compatível com a urgência e a importância do tema: o racismo da USP expresso pela composição de nosso corpo docente.

Ao comparar o perfil racial do corpo docente da nossa universidade (em que menos de 4% do corpo docente são PPI) com a população do Estado de São Paulo (com 37,5% de PPI), temos ideia da flagrante injustiça e desigualdade racial que representa a composição do nosso corpo docente.

Surpreende que não olhemos para esses números com uma vergonha insuportável, e não assumamos como tarefa urgentíssima fazer o que precisarmos para ao menos tentar mitigar este quadro, especialmente à luz dos conhecimentos e das experiências recentes que mostram que a inércia institucional aprofunda a desigualdade racial, mas que políticas afirmativas têm impacto eficiente e duradouro a favor da equidade.

Na África do Sul, vinte anos após a democratização e a superação do apartheid, indignavam-se as pessoas com o fato de que apenas 14% dos docentes de suas universidades fossem negras. Na USP, mais de 130 anos após a abolição inconclusa da escravidão, não nos aborrece o fato de termos apenas 3% de professores negros?

É claro que sim, porque o compromisso com a humanidade é o primeiro compromisso do pesquisador e do professor.

Levando a sério esse compromisso e essa consciência – mas tornando-os práticos, para que não sejam ofensivos – devemos olhar para o contexto atual da USP, e reconhecer que estamos em um momento decisivo de nossa história, no que diz respeito ao nosso dever de promover a igualdade racial entre docentes.

Tal como foi discutido na última reunião do Conselho Universitário e informado pelo Ofício GR/CIRC/109, a USP está iniciando um enorme processo de contratação de pessoal docente – com autorização para recrutamento de 876 professoras e professores nos próximos três anos.

Isto corresponde a um aumento de 16% do número de docentes, que suprirão lacunas e deficiências graves causadas pela perda de profissionais e sua não reposição nos anos de crise financeira e de restrições à contratação durante a pandemia.

Do ponto de vista moral e também jurídico, parece insustentável que este amplo processo de contratação ocorra sem qualquer consideração sobre justiça e igualdade racial.

Não pode surpreender que nos perguntemos: aplicando-se as regras e práticas atuais, quanto dessas vagas será preenchido por homens e mulheres negras?

Eis o tamanho de nossa tarefa: ainda que todas as 876 novas pessoas contratadas fossem negras (isto seria lindo, e creio que completamente justo do ponto de vista histórico e social), ainda assim não chegaríamos a 20% de docentes negros em nossa universidade, marca muito inferior à presença do negro na população paulista!

Não seria possível exigir tanto, de uma só vez… Políticas públicas precisam atender a diferentes condicionantes administrativos… mas não é evidente que deveríamos fazer algo neste momento?

Sem políticas afirmativas que promovam o acesso do negro à carreira docente na USP, poderemos ter, ao final deste intenso processo de contratação, um perfil racial ainda mais excludente e racista. Este não será um legado bonito a ser deixado pelas pessoas que hoje temos responsabilidades de gestão e planejamento da USP, em suas diferentes instâncias e colegiados.

É legítimo esperar que o Conselho Universitário, e todos nós da USP, olhemos para esse processo de contratação não apenas desde o ponto de vista das demandas de cada unidade ou departamento, mas também do seu significado histórico, tendo em vista a tarefa urgente da Universidade de São Paulo de superar o racismo que marca a composição de seu corpo docente.

Não podemos perder a oportunidade de utilizar critérios de equidade racial na contratação de um conjunto de 876 docentes, em tão curto período de tempo, em que pese a dificuldade de que tais vagas estejam modicamente distribuídas por dezenas de departamentos e unidades.

Não podemos deixar de pensar também desde a perspectiva global e histórica, tendo a consciência e o conhecimento que temos sobre o racismo no Brasil e na USP – e sabendo que decerto voltaremos a viver muitos anos de contratações escassas e pontuais.

Em um momento como este, podemos simplesmente não reagir aos clamores que chegam ao Conselho Universitário, na voz de pessoas negras que ali apresentam dados contundentes sobre o tema, sem receber nenhuma resposta nossa, nenhuma justificativa, nenhuma sinalização de que o assunto é importante?

Pareceria razoável que o tema fosse pautado com urgência no Conselho Universitário, para que se discuta se é justo mantermo-nos inertes em relação à questão de nosso racismo institucional e, no caso de assumirmos nossa responsabilidade, pensar mecanismos de implementação tendo em vista o possível e o necessário, com objetivos e metas – e sistemas de monitoramento e avaliação.

Tal como o professor Munanga explicou, a Universidade de São Paulo se fechou por muito tempo e ainda conta com parte de sua comunidade a acreditar que a excelência acadêmica seja incompatível com ações afirmativas promotoras de igualdade racial – ou que este seja um problema da sociedade como um todo, que a Universidade não pode resolver…

Eis que, mais uma vez, vamos ouvir os argumentos antes opostos às políticas de inclusão estudantil. Os mesmos que a USP venceu, quando implantou as políticas afirmativas.

Vamos ouvir que não é possível abstermo-nos dos critérios de excelência acadêmica para dar lugar a indivíduos (negros e negras) cujas formação e capacidade intelectual não sejam critérios exclusivos para autorizar seu ingresso no corpo docente da nossa universidade.

Assim também, argumentos “jurídicos” contra políticas afirmativas e promotoras da igualdade racial (embora já tenham sido substancialmente considerados ilegítimos pelo Supremo Tribunal Federal, quando julgou a constitucionalidade da Lei 12.711/2012), dizendo agora que a reserva de vagas para negros e outras políticas de inclusão, aplicadas aos certames para a contratação docente, feririam princípios administrativos ou, talvez, a isonomia, ou mesmo o próprio princípio do concurso público.

É claro que a tarefa não é simples. Há muito o que discutir e ponderar, de modo a encontrar uma regra que permita às unidades e à Universidade de São Paulo cumprirem seu dever moral e jurídico (nosso dever) de superar o racismo expresso na composição de seu corpo docente, quase totalmente branco.

Mas enfrentemos o debate (que se liga a outros igualmente importantes, como a desigualdade de gênero, sobre a qual não pudemos tratar aqui). Tenhamos paciência, mas pressa. É quiçá a maior oportunidade de nossa geração para atenuar o racismo na composição do quadro docente da USP. Ao mesmo tempo, expomo-nos ao risco de mantê-lo ou aprofundá-lo por décadas.

Não podemos perder a oportunidade de implantar critérios e políticas e cotas para começarmos a construir a igualdade racial no corpo docente da Universidade de São Paulo, aproveitando a contratação das 876 professoras e professores que temos a recrutar nos próximos três anos.

Mais uma vez: fossem 876 pessoas negras, seria lindo, porque seria direito em um sentido muito profundo. O gesto da USP mostraria ao mundo seu amor sincero pela humanidade e pela justiça. Mas se entre as pessoas contratadas não houver nenhuma ou pouco mais que nenhuma negra, também isto mostrará ao mundo o que a USP é. De qualquer modo, a responsabilidade será nossa.


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